Terceira Parte
DISCIPLINA
CAP. I — OS CORPOS DÓCEIS
Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. O
soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais
naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o
brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o
ofício das armas — essencialmente lutando — as manobras como a marcha, as
atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal
da honra:
Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e
alerta, a cabeça direita, o estômago levantado, os ombros largos, os braços longos, os
dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os pés secos, pois o
homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: [tornado lanceiro, o soldado]
deverá ao marchar tomar a cadência do passos para ter o máximo de graça e gravidade
que for possível, pois a Lança é uma arma honrada e merece ser levada com um porte
grave e audaz.
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de
uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa;
corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre
cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente
disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi
“expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”.
Os recrutas são
habituados a
manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o
ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição
lhes será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os calcanhares, a batata da
perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os
braços para fora, sem afastá-los do corpo... ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar
os olhos na terra, mas a olhar com ousadia aqueles diante de quem eles passam... a ficar
imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os pés... enfim a
marchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para foram...
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo
de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao
corpo — ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se
torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi
escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras
páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos
continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos
militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para
controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois
tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação:
corpo útil, corpo inteligível. E entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento.
“O
Homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da
alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de
“docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável.
É dócil um corpo que
pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de
ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder:
obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem
treinados e dos longos exercícios.
Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o
que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de
investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso
no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou
obrigações. Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em
primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo,
como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de
exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica
— movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O
objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do
comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos
movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre
os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício.
A modalidade
enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da
atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação
que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o
que podemos chamar as “disciplinas”.
Muitos processos disciplinares existiam há
muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas
se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação.
Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos
corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta
obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da
domesticidade, que é uma relação de dominação constante, global, maciça, não
analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu
“capricho”. Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente
codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que
sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do
ascetismo e das “disciplinas” de tipo monástico, que têm por função realizar
renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em obediência a
outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu
próprio corpo.
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma
arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo
mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Formasse
então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma
manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e
o recompõe.
Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do
poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos
outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como
se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra:
ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma
“capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a
exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção
disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma
dominação acentuada.
A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma
descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes
mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se
repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu
campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de
um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais
tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em
algumas dezenas de anos reestruturam a organização militar. Circularam às vezes
muito rápido de um ponto a outro (entre o exército e as escolas técnicas ou os
colégios e liceus), às vezes lentamente e de maneira mais discreta (militarização
insidiosa das grandes oficinas). A cada vez, ou quase, impuseram-se para responder
a exigências de conjuntura: aqui uma inovação industrial, lá a recrudescência de
certas doenças epidêmicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da Prússia. O que
não impede que se inscrevam, no total, nas transformações gerais e essenciais que
necessariamente serão determinadas.
Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no
que podem ter cada uma de singular. Mas de localizar apenas numa série de
exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizaram
mais facilmente.
Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm
sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e
detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do poder; e porque não cessaram, desde
o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir
o corpo social inteiro. Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão,
arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que
obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são
eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época
contemporânea. Descrevê-los implicará na demora sobre o detalhe e na atenção às
minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução;
recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de
uma tática. Astúcias, não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono e dá
um sentido ao insignificante, quanto da atenta “malevolência” que de tudo se
alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe.
Para advertir os impacientes, lembremos o marechal de Saxe:
Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos,
entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível levantar
qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não basta ter o
gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar pedras.
http://escolanomade.org/wp-content/downloads/foucault_vigiar_punir.pdf